são jerónimo

Por Ricardo Alves

É uma das mais famosas obras de Albrecht Dürer. Supostamente pintado em 1514, “São Jerónimo e o leão” retrata o doutor da Igreja e patrono dos escribas de forma ímpar. O santo é-nos apresentado num atelier apetrechado de úteis artefactos, robustos livros, grandes e iluminadas janelas, para além de confortáveis almofadas. Tais luxos eram, na Igreja dos finais do século IV, muito pouco prováveis. Aliás, esse tipo de imprecisões(*) é propositado, e comum a vários trabalhos de Dürer — nome maior da renascença germânica. onde é notório o pánico dos monges que correm desvairados pelas ruas. O leão viria a tornar-se guardião de um burro que lá trabalhava. Um dia, enquanto o seu protector dormia, o burro foi levado por um grupo de mercadores, que se encontravam em viagem. O leão passou então a desempenhar as tarefas do burro, até que o reconheceu numa caravana que passava. Interceptou os mercadores e levou-os até ao mosteiro. Estes pediram desculpas aos monges e devolveram o animal.“São Jerónimo e o Leão”, de Colantonio, “São Jerónimo no deserto”, de Dürer, ou “São Jerónimo”, de Caravaggio. Note-se que, para além dos elementos acima descritos, São Jerónimo é muitas vezes retratado com vestes de cardeal — algo que nunca foi.

Na gravura, como em muitas outras representações artísticas do santo(**), podem distinguir-se três elementos fundamentais: um crucifixo, uma caveira e um leão. Se o crucifixo reforça a sua postura penitente e de devoção cristã, enquanto tradutor da Bíblia, e se o crânio evoca a condição humana e mortal de Jerónimo, já a presença da fera tem a sua base nas distantes lendas do santo errante. Após a realização dos estudos de filosofia e retórica, Jerónimo deixou Roma e iniciou-se em teologia. Posteriormente, após uma visão, na qual Santo Agostinho se lhe terá revelado, decidiu dedicar a sua vida a Deus. Tornou-se então um eremita, tendo vivido mais de três anos errando pelo deserto Sírio. Mais tarde, quando se encontrava num mosteiro em Belém, os caminhos do santo ter-se-ão cruzado com os de um leão, que sofria devido a um espinho cravado numa pata. Não se intimidando, o santo conseguiu retirar o espinho, e assim aliviar o bicho. Este, tendo-lhe ficado grato, passou a acompanhá-lo.

Contam-se algumas estórias curiosas sobre o seu invulgar companheiro. Para espanto de todos, Jerónimo levou o leão para o mosteiro — como ilustra Vittore Carpaccio em “São Jerónimo conduz o Leão ao Mosteiro”

Mais tarde, Jerónimo foi investido pelo Papa Dâmaso I da árdua tarefa de tradução dos textos hebraicos e gregos para latim. O manuscrito resultante do seu trabalho de décadas é actualmente reconhecido pela Igreja Católica como a versão oficial da Bíblia. Viria a falecer no ano de 420, em Belém. Conta a lenda que o leão, qual fiel companheiro, esteve do seu lado até ao fim.

(*) A obra de Dürer é iconográficamente muito rica. “São Jerónimo no seu estudo” tem o alcance de uma celebração do renascimento. Embora represente um santo do séc. IV, a gravura transporta-nos para os finais do século XV, contendo alusões a mestres do renascimento como Da Vinci e Donatello.
(**) São exemplos